Domingo, 30 Setembro 2018

Redesaparecimento: o “fenômeno” do descaso

Por volta das 11h da manhã, seu Dedé se organiza para sair de casa. Sexta-feira, 29 de setembro de 2017, trajando camisa polo preta e calça jeans, carregando a caixinha de isopor onde transportava as ampolas de insulina. Diabético, depende de duas doses diárias periodicamente pegas em uma clínica no centro de Camaragibe, Região Metropolitana do Recife. Não gosta de celular nem decora o número dos filhos. Com o RG e R$ 700 no bolso, para as compras do fiteiro que mantém em frente de casa, se despede de dona Lourdes e sai. Até hoje, José Cassimiro Filho, 74 anos, não voltou. Nenhuma notícia, nenhuma pista.

É registrado o Boletim de Ocorrência (BO) na Delegacia de Camaragibe naquela mesma noite, cartazes são espalhados, os filhos e netos procuram incansavelmente. Hospitais, UPAs, Instituto Médico Legal (IML) em Pernambuco e na Paraíba. Mobilizam a Imprensa que noticia o sumiço de um senhor lúcido e diabético que saiu pra buscar insulina. “Teu pai não apareceu ainda?”, os filhos ouvem na Delegacia quando vão em busca das informações que não chegam. Um ano e o tempo vai levando a fé em encontrar seu Dedé com vida.

Mas o que aconteceu? Morreu, foi morto? Está vivo? Fugiu? Ele pode ter sido “redesaparecido”, como a promotora do Ministério Público de São Paulo (MPSP), Eliana Vendramini, nomeia o “fenômeno” do descaso: o indivíduo some e a família comunica o desaparecimento à polícia, mas o registro que "morre" na delegacia - sem investigação, sem alcançar hospitais, IMLs, SVOs (Serviços de Verificação de Óbito) - impede que, aparecendo em outro lugar, essa pessoa seja identificada como alguém por quem se procura. E ela “redesaparece” por causa do Estado Brasileiro.

Desde novembro de 2013, a promotora identificou mais de 3 mil pessoas registradas como desaparecidas mas que acabaram enterradas como indigentes no estado de São Paulo. Em um dos casos, foram quase 15 anos de procura por uma pessoa que havia morrido três dias depois de desaparecida: como tantas outras, são desaparecidos que apareceram para o Estado, que “redesapareceu” com eles.

“O mais incrível é que todos os serviços (IML, Polícia Civil e, em alguns estados, o SVO), além de estarem no mesmo Estado, estão dentro da mesma Secretaria de Estado, e não trabalham em rede, base da política pública moderna, que se pretende eficaz”, registra Eliana em um dos artigos escritos sobre o tema. Em Pernambuco, um corpo não reclamado fica por 15 dias no IML, depois é enterrado pela Prefeitura do Recife em uma cova coletiva no cemitério Parque das Flores.

Saga da família
Neste sábado (29), faz um ano que seu Dedé sumiu, data que lembra o suplício que a família dele passa, a exemplo de muitas outras, e o despreparo com que o assunto é tratado pelo Estado Brasileiro. “Vocês não investigam por quê? E se fosse seu pai?”, perguntava a filha mais velha, Miriam Cassimiro, ao agente que a atendia, há uma semana, na presença da reportagem, na Delegacia de Camaragibe.

Até a publicação desta matéria, neste domingo (30), a família continuava sem qualquer informação sobre a existência de uma investigação em curso e nos repetiu várias vezes que nunca qualquer um deles foi ouvido pela polícia - exceto Miriam, que foi à delegacia por iniciativa própria em busca de notícias do pai.

A reportagem foi duas vezes à Delegacia em busca de informações sobre a investigação, mas não teve acesso. Recorreu ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE), o fiscalizador da trabalho da polícia, mas o pedido do promotor Marco Aurélio Farias à promotoria de Camaragibe não tinha sido atendido até a noite da última sexta (28). “Pelo que você falou, é capaz de nem existir inquérito ainda, ou eles teriam ao menos mostrado”, disse o promotor à reportagem.

“Provavelmente, eles não têm nada feito. Não se investiga desaparecimento porque, por si só, não é crime e se acha que é favor, mas é um ato administrativo público que está locado na delegacia. E o inquérito policial é público pelo Código de Processo Penal, se não tiver sigilo decretado. A parte (a família) quer e tem direito a uma cópia”, explica Eliana Vendramini, do MPSP. “Se vai ser crime, ou não, se os indícios virão ou não, vai depender dessa investigação, e ela é obrigatória, seja o fato crime ou não”, argumenta.

 

Desde que José Cassimiro Filho desapareceu, a família se mobilizou para encontrá-lo. Atrás das imagens da linha Cosme e Damião, a que ele deve ter tomado para buscar a insulina, descobriram que nada foi registrado. “Os funcionários olharam e disseram que não viram, depois de mais de mês que estávamos tentando. Disseram que justamente no horário que ele saiu, as câmeras estavam sem funcionar”, conta um dos filhos, Orlando Cassimiro.

A Urbana-PE, sindicato das empresas de transporte público, explicou que imagens de câmeras de segurança são guardadas por 72 horas, salvo se houver algum crime no ônibus. A família foi informada também que as câmeras da Secretaria de Defesa Social (SDS) da avenida principal de Camaragibe não funcionavam.

“Até na Paraíba a gente foi, mas o acesso é muito complicado. Não tinha funcionário quando chegamos lá”, conta a esposa, Maria de Lourdes Cassimiro. À Secretaria de Saúde do Estado, a família pediu que um ofício fosse enviado aos hospitais, e eles também percorreram todos. E nada. Com um ofício na Delegacia em mãos, onde a delegada Euricélia Nogueira atesta que o idoso está desaparecido, a esposa foi ao INSS: dependente dele, precisará esperar até que se complete 2 anos e meio de sua ausência para ter acesso ao dinheiro. "Lá, eles disseram que pai nunca mexeu na conta. O dinheiro está intacto", explicou Miriam.

Por nota, a Polícia Civil de Pernambuco (PCPE) garantiu que existe inquérito em curso e que todas as providências de praxe para casos de desaparecimento foram tomadas, como solicitação de imagens e averiguações no IML, e que as investigações continuam. Repassou, na nota, as mesmas informações prestadas pela família no registro do BO, e afirmou que “realizou a escuta de familiares e pessoas que tiveram contato com idoso no dia do fato” e que o senhor José Cassimiro Filho não teria saído de casa com documento de identificação.

Sobre isso, a reportagem apurou que os membros da família não foram ouvidos (a exemplo da esposa, Maria de Lourdes, última pessoa a vê-lo naquela sexta-feira). A família também refutou que o idoso tenha saído de casa sem documentos, uma vez que usava o RG para garantir o acesso à gratuidade do transporte público. No dia 3 de setembro último, a reportagem solicitou, por e-mail, uma entrevista com o delegado responsável pelas investigações e foi informada, também por e-mail, que a delegada Euricélia Nogueira preferia não se pronunciar. Na última sexta, foi solicitado à Urbana-PE que confirmasse, junto à empresa Metropolitana, quanto ao recebimento do ofício em que a polícia pede as imagens, o que deve ser respondido nos próximos dias.

Na sexta-feira (21), a Folha acompanhou a retomada das buscas nos registros no IML, no Recife, paradas desde março. Um funcionário informou que o ideal é que a família de um desaparecido acompanhe o registro de corpos uma vez por semana. “Recebemos cerca de 20 por dia, são 600 por mês, em média. A gente sabe que é difícil, mas é o jeito”, justificou.

Esses registros são feitos em planilhas de Excel, separadas por dia, reunindo dados de corpos identificados e de indigentes. “É muito tempo (sem acompanhar). Se chegou aqui sem identificação, foi enterrado como indigente”, disse outro funcionário.

A Folha também fez tentativa com a família no SVO, onde um funcionário informou que lá não se necropsia corpos sem identificação e sem autorização de um parente de primeiro grau, mas como seu Dedé saiu com o RG de casa, ele acabou permitindo que a filha, Miriam, entrasse sozinha para ver o livro de registros. Por lá, José Cassimiro Filho não passou.

“Eu não me sinto viúva. A gente não tem uma resposta, e a gente aqui em casa não tem esse pensamento de que ele está morto. A gente tem a esperança. Uma irmã minha sumiu e apareceu morta, a gente não sabe quem matou, mas teve uma solução. No caso do meu marido, não. Ele sumiu simplesmente, a gente quer saber o porquê, o que aconteceu. A gente não teve ajuda! Porque a gente não teve ajuda? Como é que a gente pode dizer que tá morto se não deu entrada em canto nenhum?”, desabafa, chorando, dona Maria de Lourdes.

Como morava sozinha na casa com o marido, é dona Lourdes quem mais sente a ausência dele. Mas o luto pelo desaparecimento é dos mais cruéis para o ser humano porque sem a materialidade do corpo, sem o desfecho do fato, é muito mais difícil aceitar o vazio. O luto tem características específicas e estágios e não tem tempo definido.

Segundo a psicóloga especialista em luto Fernanda Verícimo, pode-se dizer que a angústia é mais forte por um ano, quando se passa pela primeira vez por datas específicas como aniversário e Natal. “Na nossa sociedade, temos os rituais funerários que são importantes para dar materialidade à morte. Por isso o corpo é importante, ou uma confirmação daquela morte, para que se feche um processo e se comece outro”.

Delegados
Segundo o delegado titular do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Guilherme Caraciollo, não é comum que uma pessoa suma sem deixar rastros. "Acontece de a pessoa que quer mesmo sumir, muitos registros são de desaparecimento voluntário. Mas no caso desse idoso, seria possível ter algum rastro. Muitas câmeras aqui na cidade, contatos com operadoras de telefonia, a gente se cerca dessas coisas para tentar localizar. Isso, aqui na capital é mais fácil, mas em Camaragibe, em locais mais humildes, não têm". De acordo com Caraciollo, depois de tanto tempo de desaparecimento, fica mais complicado encontrar. "Que a gente tenha ciência, são pouquíssimos casos. Dá menos de 10% dos casos, se for colocar no papel".

"No caso dele (seu Dede), a possibilidade de crime não é grande por causa do estilo de vida que ele levava. Acredito, realmente, que esteja relacionado a algum registro que não foi visto no IML. Se você for lá, pode ver se tem algum corpo com identidade desconhecida, eles vão te mostrar. Mas fica um tempo, depois é enterrado como indigente. Acontece muito com morador de rua, que não tem ninguém. Mas eles (o IML) tiram fotografia, a família tem acesso", explica o titular da Delegacia de Desaparecidos e Proteção à Pessoa (DDPP), delegado Ian Campos - cuja equipe conta com cinco agentes e um escrivão. "Sinto muita falta dessa integração, de a gente poder acessar todas as informações, até de hospitais. Seria mais fácil", completa.

Sinalid, uma luz
A dificuldade causada por essa falta de cruzamento de dados é um dos problemas que o Ministério Público brasileiro pretende resolver com a implantação, em todos os estados da federação, do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (Plid), cujo encadeamento já está formatando o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid).

De acordo com a secretária de Direitos Humanos e Defesa Coletiva do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ivana Farina, o Plid carioca cruzou com sucesso informações do IML, do Sistema Único de Saúde, de redes asilares, citando alguns. Acessando inquéritos policiais, a equipe do Plid percebeu que muitas vezes não havia investigação de desaparecimentos. Dessa forma, o MP do Rio, em 2017, registrou 700 casos solucionados, encontrando o desaparecido ou confirmando sua morte. “Para aquela família, pode ser um sepultamento digno e o fim do martírio diário. Temos que provocar as estruturas do Estado Brasileiro encarregadas”, afirma.

Em Pernambuco, Marco Aurélio Farias é o promotor à frente do Sinalid, que está em processo de formatação. Por nota, o MPPE explicou que quem desejar incluir um parente no Sistema deve procurar o Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Defesa da Cidadania (Caop Cidadania), na avenida Visconde de Suassuna, 99, Santo Amaro, no Recife. O atendimento acontece de segunda a sexta, das 12 às 18 horas.

É necessário fornecer informações como número do BO, data, local e circunstâncias do fato, data do registro, delegacia onde foi registrado e dados do desaparecido (nome, data de nascimento, RG, CPF, nome do pai e da mãe, endereço de residência, cor da pele, dos olhos, do cabelo, altura, sinais particulares, vestimenta) e a identificação do comunicante (basicamente os mesmos dados do desaparecido mais o grau de parentesco).

“Estamos partindo de muito pouco. Para se ter uma ideia, Ministério dos Direitos Humanos tirou o banco deles do ar porque estava com 3 mil desaparecidos, um universo pífio diante de mais de 80 mil pessoas. O Sinalid, hoje, tem cerca de 60 mil, mas ainda muito concentrado nos dados de São Paulo e Rio de Janeiro”, diz Ivana. O Ministério informou à reportagem que o site www.desaparecidos.gov.br passou apenas dois meses desativado, e já está novamente disponível.

Dados de pessoas desaparecidas
O anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública começou a coletar dados de pessoas desaparecidas em 2017, por entender que a situação precisa de visibilidade. “Quando olhamos para essa tabela, temos mais perguntas que respostas”, diz a consultora do Fórum, Olaya Hanashiro.

Quando se fala em pessoas desaparecidas, continua Olaya, estão envolvidas uma série de eventos diferentes, desde o desaparecimento voluntário, que não tem pendências policiais e é um direito, até desaparecimento de um vulnerável, como um menor de idade ou pessoa idosa com senilidade ou alguma incapacidade.

“São necessárias políticas intersetoriais, com envolvimento de vários órgãos do Estado. Para qualquer situação, a gente precisa saber em que circunstâncias as pessoas estão desaparecendo, qual o perfil, faixa etária, raça/cor, sexo, território onde essa pessoa desapareceu ou morava. Tudo isso é importante para entender do que estamos falando”.

Em tempo
Pernambuco tem duas leis estaduais que tratam do desaparecimento de pessoas, 12.928/2005 (que “Institui o Sistema de Comunicação e Cadastro de Pessoas Desaparecidas”) e a 16.223/2017 (que “Obriga divulgação de fotos de pessoas desaparecidas em faturas de instituições financeiras com sede ou filial no Estado de Pernambuco”).

Fonte: Folha PE

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